Nós normalmente buscamos a realização através de formas que vão sendo construidas, ou planos que são colocados em prática. A nossa ideia de realização enquanto pessoa normalmente está atrelada a um ponto-de-vista que defende que situações ou objetos devem ser conquistados. Esta conquista implica em um processo, que envolve distância, tempo.
Observemos os pequenos afazeres individuais, como um simples gesto de acender um cigarro ao sentir ansiedade, bem como os grandes afazeres coletivos, como a civilização que por um lado corre para aumentar a produção e por outro consome cada vez mais rápido e em mais quantidade.
Em ambos os casos observamos o mesmo desdobramento do seguinte ponto-de-vista: a ideia de insuficiência, uma distância psicológica entre um agora supostamente pior e um durante/depois supostamente melhor e, finalmente um depois que mesmo cumprindo o esperado no início se torna imediatamente insuficiente, dando reinício a todo o processo.
Não é mais ou menos isto que estamos fazendo com a nossa vida individual? E não seria isto que os homems estão fazendo enquanto sociedade?
Neste ponto poderíamos analisar como no nível individual e no nível coletivo tal atitude em regime desenfreado, automático e compulsivo, degrada pessoas, cria patologias e destroi o planeta.
Mas gostaria de prosseguir por outro caminho.
Existem coisas que são inquestionáveis na vida. Tudo, absolutamente tudo o que conhecemos tem uma duração e, portanto, um início e um fim. Talvez o mais difícil de aceitar seja a própria morte, o envelhecimento, a decomposição e a extinção deste corpo biológico, deste cérebro, desta indivíduo.
Qualquer forma, seja um objeto, um planeta, um átomo, uma sensação, uma emoção, um pensamento, nasce, vive por um tempo e cessa de existir como tal.
Esta impermanência é talvez uma das poucas coisas das quais pode-se ter certeza. Não se trata de uma crença, uma proposição. É um fato.
O segundo ponto inquestionável a respeito da existência é que por de trás de toda forma observada, seja um pensamento, um objeto, uma sensação, existe uma faculadade de observação, atenção, consciência.
De forma que não poderia haver forma alguma se não houvesse uma faculdade de observação, testemunho para perceber a forma. Não existe sentido em se clamar pela existência de formas que não podem ser observadas, deduzidas (observadas) ou inferidas (observadas).
Neste exato momento, em que este discurso é apreendido, perceba o que ou quem apreende o discurso. Reconheça a atenção, a observação a consciência por trás desta ação, desta compreensão. Perceba também que você tem pontos de vista, julgamentos, concordâncias ou discordâncias sobre o que está sendo colocado aqui. Perceba que tais pontos de vista são também pensamentos, redes conceituais através das quais se filtra e se observa.
Perceba que por trás deste discurso existem seus pontos-de-vista e, por trás dos pontos-de-vista, existe ainda a faculdade da observação. Esta pura observação pode observar não só este discurso como também o diálogo interno a respeito deste discurso.
Enquanto essas palavras são assimiladas, uma profusão de ideias, concordâncias, discordâncias, expectativas são provocadas. Todo este movimento de conceitos e pensamentos são formas que surgem em um espaço de observação.
Nós normalmente nos esquecemos completamente da existência deste espaço aberto, pré-conceitual, pré-verbal, não-julgador porque paassamos a vida montados em pontos-de-vista, tomando partidos, em conceitos que são lentes através das quais vemos o mundo.
Se nos observamos agora, percebemos que há consciência, atenção que ilumina todas as formas internas e externas. Algumas formas são tão próximas que a própria atenção se confunde com elas e se tornam pontos-de-vista que determinam toda a nossa interpretação pessoal de mundo.
Ainda que indentificada com pontos-de-vista, a consciência em si é evidente, simples de ser encontrada, óbvia no momento presente.
Esta consciência está aqui agora. Esta consciência estava aqui há dois minutos atrás. Havia consciência há uma semana, há um ano atrás. Esta mesma consciência estava aqui no momento que você nasceu…e fundamentalmente esta consciência testemunhou o início da vida neste planeta, a separação dos continentes, a formação de galaxias, o big bang…
Percebe agora que, dito isto, outros novos pontos-de-vista podem surgir, ceticismo, discordância… Qualquer conceito que surge em sua mente neste momento é igualmente o movimento de formas, com início, meio e fim. Qualquer julgamento a respeito do que está sendo dito é também uma forma em movimento.
Perceba o que observa todo este fluxo. Esta simples ação, que não exige esforço, é a ação mais poderosa que um ser humano pode empreender. É o reconhecimento instantâneo, imediato, do espaço aberto, que contém todo o mundo observado, bem como o sujeito que interpreta e os pontos de vista que qualificam, ou que criticam. Este reconhecimento nos remete a uma realidade pura, que nos coloca numa condição anterior a de ser este humano dotado de corpo, cérebro, memórias e opiniões.
E lembre-se, qualquer julgamento a respeito do que está sendo colocado é uma forma. Por que tomá-la como propriedade sua? Uma opinião “sua”? Quem é você quando você reconhece inclusive este espaço onde o mundo e você surgem igualmente enquanto formas?
Então, neste ponto, se estamos juntos, podemos entender com clareza que por um lado existem formas montando-se e desmontando-se continuamente na existência. Neste ponto dispensamos qualquer ideia de fronteira entre dentro e fora, sujeito e objeto (ou melhor, se esta ideia surge, inclusive ela é apenas o movimento de um ponto-de-vista que não precisa ser acreditado).
Aqui, onde estamos, não existe sujeito, apenas objetos. E aqui, sem qualquer temor, a sua pessoa é apenas uma rede conceitual destinada a se desorganizar e a se decompor.
Neste universo de bilhões de nascimentos e mortes corriqueiras, onde o nosso corpo biológico não contém nem mesmo uma única célula hoje que existisse há 7 anos atrás; neste universo de nascimentos e mortes corriqueiras, onde a organização é um privilégio numa sopa caótica de partículas e vetores de energia; a maior ousadia da forma é ela mesma atingir um status de sujeito, de pessoa que nega seu próprio destino de extinção.
Bem aqui, imediatamente atrás de toda a dança de formas e vetores, sujeitos autointitulados, está a consciência, sentido, percebendo todas as cores do mundo.
Difícil permanecer nesta posição? Fácil escorregar para o domínio do sujeito, dos julgamentos, das resistências conceituais? Fácil de retornar a este escafandro apertado mas conhecido, com janelas estreitas, mas blindadas? Sim, este escafandro do sujeito, com seus pontos-de-vista socialmente, culturalmente injetados ?
A voz que grita e emite opiniões não é você, é um implante cultural, talvez um implante etnocêntrico, talvez um implante cientificista, ou positivista. Nem mesmo chamar isto de implante seria uma abordagem justa, tavez não existam sequer mentes individuais.
Talvez a mente seja como uma sala de espelhos onde um cachorro é inadvertidamente solto e começa imediatamente, tomado por cólera, a rosnar contra os milhares de outros cachorros virtuais que aparecem e se proliferam por todo o espaço imaginário. Talvez seja a própria mente em si que faz de um muitos, que estabelece fronteiras entre dentro e fora, entre eu e você, entre hoje e ontem.
Enquanto o cão rosna tentando defender seu ponto de vista contra o vigésimo cão que surge diante de si, o espaço da pura observação se mantém numa indiferenciação quase que generosa, num testemunho quase que afeiçoado, quase amoroso, num gozo suave de sabedoria, liberdade de pura observação de qualquer forma que não pode de forma alguma manchá-lo…
Qual é o sabor deste reconhecimento deste espaço de indiferenciação? Este momento, este exato momento é o único momento que existe. Não foi sempre assim? Não se habita sempre o aqui-agora? Ora com corpo de criança, ora com corpo de atulto, ora com imagens projetadas numa tela de cinema? Quando estamos no cinema, não passamos a habitar mais os corpos dos personagens do que os nosso próprios? A ponto de se comover, se emocionar durante o filme? O que é este espaço de observação que facilmente se identifica com coisas? Afinal, o que é o sujeito senão a própria memória em ação, uma busca compulsiva por auto-referência?
Um amnésico, que perdeu toda a sua história, ainda observa, completamente nú, completamente virgem, livre de todo o passado. Ele ainda sente, ainda vê, ainda percebe e manipula conceitos. Apenas não tem auto-referência. Ele não é mais aquele sujeito.
Nada mais do que uma lesão microscópica. Basta uma pequena lesão microscópica para todo este seu Eu tão esmerado, tão educado, tão cheio de laços familiares, tão cheio de preocupações, tão cheio de títulos, tão cheio de infortúneos, tão cheio de glórias, de um segundo para o outro não esteja mais aí, nem mais um traço dele, perdido para sempre nos confins do Cosmos.
Ao que estamos nos apoiando? Por que mesmo vivemos a vida, passamos a vida, morremos a vida defendendo com unhas e dentes que somos esta entidade, tão volátil ? Apenas por medo de relembrar sua verdadeira natureza?
Se você não for mais apenas este Eu, você conseguirá ser tão autocentrado? Com o que você se ocuparia, a não ser com o benefício de todos os seres, de toda a criação?
Isto, neste momento diversas imagens passam aí, diante do plano infinto de observação. Percebe este fluxo automático, compulsivo de opiniões, elas não são suas, elas são todas emprestadas. Permanece apenas com aquilo que te diz respeito – o infinito.
Fica aí. Não se mexe. Apenas acorda, o filho pródigo pode retornar pra casa. Há de ter uma grande festa.